terça-feira, 27 de agosto de 2013

Muita gente insiste em encarar o êxito de um jovem da periferia sob uma lógica demagóca. Douglas Din, bicampeão do Duelo de MCs Nacional, carrega em seu histórico alguns dos elementos clássicos de um herói idealizado em um imaginário pautado pela segmentação irreversível das classes sociais, que enxerga o mundo de cima para baixo.

Ele é negro, morador do Aglomerado da Serra - a segunda maior favela do Brasil - e segundo ele, se livrou de um "rumo meio desastroso" por conta de seu envolvimento com a cultura Hip Hop. Como se não fosse o suficiente, sua filosofia de vida quase teocêntrica o insere numa narrativa moralista, semelhante à de Davi - aquele personagem bíblico, o menor de sua pobre casa, desbravador do gigante Golias e que, após provações, se tornou rei de Israel.

Nenhuma das características apresentadas desqualificam a construção de luta feita por Doulgas Din, desde os 12 anos de idade, quando surgiu o interesse pelo Rap justamente pela identificação com letras que musicavam a realidade nas periferias.

Só que Din não tem medo de fugir. Não vai se abster de virar mainstream, assume decisões pouco pensadas, tem planos ambiciosos de subverter as máscaras do mercado fonográfico e nem mesmo se polpa de rebater as críticas quanto a legitimidade de sua vitória no Duelo de MCs Nacional 2013.

Douglas chegou sorrindo, pediu objetividade - ainda tinha que buscar o celular perdido no último domingo enquanto era erguido pela multião eufórica. Sereno, poético, mas rasgante, ele compartilhou com o NINJA sua visão otimista sobre legado do coletivo Família de Rua, principal articulador da cena Hip Hp em Belo Horizonte. Também falou de transformação social e deu pistas do que mais, a curto prazo, podemos esperar de seu talento.

Confira a entrevista na íntegra:

Desde quando você se interessa pelo Hip Hop?
Na verdade eu me interesso e ouço Rap desde os 12 (anos), escrevo desde os 14, e depois do surgimento do Duelo (de MCs) é que eu pude exercer o que é minha profissão, saca. Basicamente a coisa começou em 2007, pra valer.

Você acha que sua vivência na periferia exerceu alguma influência no seu interesse pelo Hip Hop?
Não que eu não ouvia outros estilos musicais, mas foi o Rap que tocou mesmo. Que me incentivou a transcrever ali, a passar para o papel a minha história. Eu acho que é isso - a similaridade de histórias.

E o Hip Hop como cultura de resistência, o que você tem acrescentar pra gente?

É muito complicado quando se fala em Hip Hop pra galera que é mais nova, assim. Porque até um tempo atrás eu não conhecia a história real do Hip Hop e, depois que eu passei a conhecer, eu o entendi muito mais como um estilo de vida muito além da própria resistência, mas falando da vida como um todo, em qualquer contexto, em qualquer lugar, em qualquer situação. Eu acho que o Hip Hop é muito mais completo e essa face da resistência deu uma sumida em vista da necessidade de fazer disso uma profissão. O mercado pede outras temáticas, pede que você fale de outro jeito, que seu discurso seja outro, que seja mais eleve. Então, a face da resistência - aquela mais protestante, aquela mais crítica e mais ácida - deu uma esfriada.

Você acha que o Duelo de MCs reafirma essa face de resistência no Hip Hop?

Com certeza. O Duelo passou por várias fases e algumas pessoas, durante algum tempo, sugeriram, em conversa comigo assim, numa conversa do dia a dia, que o Duelo deveria ser feito em Casas fechadas, em casas de shows, pra que não tivesse problema, que não tivesse confusão. A postura do (coletivo) Família de Rua, nesse instante, foi justamente o contrário. De manter o Hip Hop na rua, onde todos teriam acesso. Entendendo que a cultura Hip Hop significa pra galera que ainda não conhece, que vai conhecer, pra quebrar essas barreiras. Você coloca isso numa casa de shows, vai virar uma festa como qualquer outra. Uma festa de boate. E é disso que nasce a resistência - do acesso livre mesmo.

Você tem uma experiência pessoal, uma experiência prática, do Hip Hop como cultura de resistência influenciando em alguma coisa na sua vida?

O discurso que estava lá nas letras de rap, de onde veio essa identificação, ele foi muito importante pra eu tomar consciência de várias coisas. Não foi um discurso vazio, foi em vão, o que eu eu ouvi, eu consegui assimilar parte, absorver parte. E essa parte foi super transformadora, sim. Mas essa face da resistência, essa face do protesto, essa face da crítica construtiva, foi a que me tirou de um rumo meio desastroso - e que está presente, muito presente, na minha comunidade. A galera que está lá sofre com isso.

Você é bicampeão agora do Duelo de MCs Nacional, e as portas devem estar se abrindo pra você justamente por esse reconhecimento dentro da cultura Hip Hop. Se apresentassem uma proposta de mercado, você cederia? Qual seria o seu posicionamento frente ao mercado?

Muita gente fala dessa questão com certo receio, são até contra falar dessa coisa de mercado. Mas, eu me acho bem inteligente em fazer algo da hora, algo inteligente, algo que toque em vários. Se eu precisar de dinheiro, vou trabalhar numa boa, sim. Se vier uma proposta da hora, eu vou usar minha inteligência para poder subverter essa lógica que o mercado pede - mais amena - e vou tentar fazer uma parada da hora com consciência.

Você falou de suas referências que estão representando na cultura Hip Hop. Quais são elas?

Atualmente, eu posso citar umas três. Uma, é o cara que me inspirou nessa coisa de freestyle e hoje é a maior vitrine que eu tenho - que é o Emicida. Uma outra pessoa, a qual tive a oportunidade de ver o show três vezes, a última no Duelo de MCs Nacional, é o MC Marechal. Tem também uma outra galera que não é daqui, é do interior de São Paulo, chama Síntese. Esses três me fizeram mudar de rota em relação ao que eu estava seguindo.

Como você enxerga a ocupação dos espaços públicos com atividades que reafirmam a cultura de periferia na rua?

Muito legal pra quem vê, um trabalho necessário, mas penoso pra quem faz acontecer. Quando o coletivo Família de Rua começou a se preparar mentalmente e se organizar politicamente, a coisa fluiu. Isso foi uma coisa gradual, e a gente também teve se colocar em nosso próprio lugar e rever nossos conceitos. A gente tinha que ter uma fala que servisse para discursar num seminário, na rua e na boate. Aprendemos na rua. Quando a gente chega na rua e vê um bagulho que pode parecer livre, que você pode fazer o que quiser - não. Começamos a ver que esses espaços pediam mais educação, mais organização, mais entendimento político da nossa parte. É isso que torna legítimo e torna mais sólida toda a conquista. Quanto mais a gente se organizar, entender das leis que regem o país, seguir as leis do nosso coração, melhorar nosso vocabulário e expandir a ideia, mais pessoas vão chegar e assimilar isso com maior facilidade. Entendendo que nosso discurso está melhor, que podemos conversar com político, com um mendigo - pode conversar com um irmão, com os amigos, enfim, com o pai, de uma forma diferente. Vamos alcançar outros lugares e ocupar novos espaços.

A gente quem?

Todos nós. Desde o molequinho na periferia que, quando vê o vídeo na televisão do mano que mora do lado, acha da hora, até o playboy que não compreendia o moleque da periferia. Somos todos nós mesmo: o religioso, o não religioso, o que acredita em Deus ou, sei lá, em Krishna.

Qual é o legado construído pelo Duelo de MCs para outras atividades e iniciativas culturais de Belo Horizonte?

Eu já tive a oportunidade de ir com o coletivo Família de Rua para discursar e fazer rima em seminário, em escola. Teve um projeto da irmã do Chico Buarque - acho que chama Universidade das Quebradas. Eu fui com eles para entender o assunto e fazer o assunto em rima improvisada. É esse tipo de interação que nos fortalece. A educação, fora a arte, essa não tem igual. Esse é ponto chave da coisa. Fora da arte é, por exemplo, um moleque que está dentro de uma escola particular, e ele passa a vida toda andando do outro lado da calçada. Ele passa a vida toda dentro de uma roda de amigos. Não conhece a favela, ou se conhece, só pelo noticiário. Talvez noticiário veja, não quer mesmo saber da favela. Ele não é obrigado, ninguém é obrigado a ver. Mas quando ele enxerga um cara na escola dele, no microfone, fala da favela, ele vê que aquilo é um bagulho da hora. Isso é fora da arte, isso é extra arte mesmo. É você enxergar a pessoa como ser humano mesmo. Eu gostaria que o Duelo, com todas essas contribuições, com todos esses comparecimentos e apresentações, tocassem as pessoas de uma forma a enxergar talentos em potenciais.

Como você encara a conectividade dentro do Duelo de MCs Nacional, com a interação de mestres de cerimônia de 8 cidades diferentes?

Por enquanto a gente só tem representante do norte, não temos do sul. Norte e sudeste. Eu já conhecia os baianos - eu já tinha ido lá (na Bahia). Não tinha conhecido um paraense. Pra mim é tudo extrarte. É uma questão de cultura mesmo. Eu disse pra ele (ao paraense) que as pessoas que não o conheceram, de cara, reconhecem o lugar de onde ele vieram. Essas trocas são muito boas. Mas se for falar no meio profissional mesmo, ainda não tenho experiência pra falar.

Eu me referia à parte profissional também, mas queria saber sobre a cultura Hip Hop de vários lugares conectados. Como você visualiza essa junção?

Sem essa fita de campeão, depois de um tempo eu passei a enxergar as paradas mais de uma forma uniforme. As diferenças não vêm do Hip Hop - que continua o mesmo. A questão é a pessoa.


Você tem mais alguma coisa pra contar sobre suas duas grandes experiências no Duelo de MCs Nacional?

Nunca tinha acontecido essa história de bicampeão nacional de freestyle. Muita gente tentou e não consegui ser campeão duas vezes. Eu sou um cara que acredito muito em Deus e, independente da visão das pessoas, eu dou todo o crédito a Ele. E essa coisa de Duelo é um passo também. Vivi seis anos disso, um desafio feliz. Ano passado foi muito bom, mas eu não me sentia preparado. Hoje eu me sinto pronto para mudar de rota, me dedicar à escrita. Freestyle hoje em dia é vitrine.

Conta mais sobre essa sua mudança de rota

No ano passado, quando eu ganhei (a última edição do Duelo de MCs Nacional), investi todo o dinheiro - sem tirar nenhum centavo - na produção de um disco. Só que eu cometi um erro: não ter todas as composições prontas antes de ir para o estúdio, tive que escrever durante o processo. Daí não consegui terminar em um tempo menor. Esse disco que eu gravei ano passado vai ser lançado, mas antes tenho outros planos. Uma nova direção. Eu tenho uma missão sagrada, quero me dedicar a escrita.

Essa sua imersão na escrita se dá em que tipo de projeto, algum não necessariamente musical?

É música.

Você pensa em participar do Duelo de MCs Nacional do ano que vem?

Pode ser que eu mude de ideia, mas não. Não é por falta de vontade, é que eu posso estar tirando a oportunidade de alguém. Porque freestyle é realmente uma vitrine.

Qual é o seu posicionamento a respeito dos questionamentos à legitimidade da sua vitória?

Eu conversei com o menino que batalhou comigo, eu já conhecia ele. Eu entendo o seguinte: se você pode mudar a situação fazendo seu julgamento, então julgue. Só que eles têm consciência de que eles não podem fazer isso, e o que foi, foi. Então, eles fazem isso pra alguém se sentir mal, pra eu me sentir mal, ou para os juízes, ou qualquer um que estivesse trabalhando na organização.


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